segunda-feira, 3 de maio de 2010

A Misteriosa História de Kaspar Hauser (1974) Dir. Werner Herzog




“Vocês não ouvem os assustadores gritos ao nosso redor que habitualmente chamamos de silêncio?” (Prólogo do Filme O Enigma de Kaspar Hauser de Herzog, 1974)


Pensando sobre a vida em si, inclusive sobre a minha aculturação enquanto indivíduo dentro de uma sociedade repleta de conceitos hipócritas. Estive observando os padrões morais que nos são impostos e que muitas vezes nos distanciam da verdade sobre a nossa própria natureza. Estive pensando na religiosidade fascista, repleta de seus pederastas, mentirosos, corruptos e capitalistas. Além de todos os pobres de espírito que já morreram ainda em viva carne, pulsando por uma verdade além túmulo, deixando a vida em si acinzentada diante da eterna oposição às outras culturas. Tudo isso simplesmente para louvar o desvario da inexistência, tão viva no imaginário coletivo, tão morta em sua simples concepção. Meus pensamentos vagaram por muitas veredas e narrá-los aqui seria caminhar no infinito, pois eles se ramificam rapidamente como galhos de frondosa videira, germinando cachos de rubra cor. Tais sentimentos, tão pessoais, que não caberiam a esse artigo. Portanto, irei me estender a Kaspar Hauser e a idéia da “interação social”.

Recentemente, pesquisando sobre certos fatos históricos, encontrei a interessante e misteriosa história Kaspar Hauser. Fato real acontecido na Alemanha de 1820 que entrou para a História como paradigma sociológico da aculturação.  Sua existência intrigante nos assegura que outros como ele sempre estiveram por aí. Talvez não propriamente trancafiados por mais de trinta anos, excluídos da existência de uma humanidade, não necessariamente grandes bebês que não sabem andar, falar ou comer decentemente. O interessante dos relatos que narram a trajetória desse personagem real não é mitologia criada em torno de sua figura quase mítica, mas ao contrário, aquilo que ele tem de mais relacionável, que diferenciava sua experiência de uma mera adaptação ao mundo para uma aproximação frontal e direta da mecânica que rege uma vida que não era a vida de antes.

Está curioso para saber quem é Kaspar Hauser? A curiosidade é a grande especulação sobre o enigma que permeia a vida desse sujeito. E para que minha narrativa não pareça complexa, detive-me em apenas suscitar a sua curiosidade, pois entrarei daqui por diante em dois pontos importantes sobre os fatos que permeiam o mistério de Hauser; a sua vida em si e o filme do diretor Werner Herzog - O Enigma de Kaspar Hauser – que trata do assunto no campo da sociologia.


KASPAR HAUSER
Fatos históricos da criança selvagem


Kaspar Hauser nasceu no dia 30 de Abril de 1812. Passou os primeiros anos de sua vida aprisionado numa cela, sem ter nenhum contato verbal com nenhuma outra pessoa, além de seu “carcereiro” que lhe servia apenas água e pão. A falta da prática verbal fez com Kaspar não adquirisse nenhuma linguagem. Passava horas sentadas ou dormindo, sem nunca andar.  Supostamente com quinze anos de idade, foi deixado em uma praça pública de Nuremberg, em 26 de maio de 1828, com apenas uma carta endereçada a um capitão da cidade, explicando uma parte de sua história, um pequeno livro de orações, entre outros itens que indicavam que ele provavelmente pertencia a uma família da nobreza. Hauser foi encontrado imóvel, sem dizer uma palavra. Os moradores pensavam estar diante de um louco ou um bêbado. Enganados, não imaginavam que estava diante de alguém que viu a luz e o mundo externo pela primeira vez após 16 anos.


Cela onde esteve apresionado, descoberta em 1920

Após verem o destinatário da carta, encaminharam o garoto ao seu destino. Com o passar dos dias lhe foram ensinadas as primeiras palavras, e com o seu contato com a sociedade, ele pôde paulatinamente aprender a falar, da mesma maneira que uma criança o faz. Afinal, ele havia sido destituído somente de uma língua, que é um produto social da faculdade da linguagem, não da própria faculdade em si. A reclusão social de que foi vítima não o privou apenas da fala, mas de uma série de conceitos e raciocínios, o que fazia, por exemplo, que Hauser não conseguisse diferenciar sonhos de realidade durante o período em que passou aprisionado.

Devido aos anos de solidão, Hauser odiava comer carne e beber álcool, já que aparentemente havia sido alimentado basicamente por pão e água. Aprendeu a falar, a ler e a se comportar, e a sua fama correu a Europa, ganhando o título "filho da Europa". Kaspar Hauser aprendia as coisas muito rápido, tendo um desenvolvimento notável do lado direito do cérebro notoriamente maior que o do esquerdo, o que teoricamente lhe proporcionou avanços consideráveis no campo da música.

Hauser foi assassinado com uma facada no peito, em Dezembro de 1833, nos jardins do palácio de Ansbach. As circunstâncias e motivações ou autoria do crime jamais foram expostas as claras, apesar da recompensa de 10.000 Gulden (c. 180.000,00 Euros) oferecida pelo rei Luís I da Baviera. No entanto sua história não termina aqui.


UMA CURIOSA HISTÓRIA NARRADA EM AUDIO


Esta é apenas uma parte da história, sem seus detalhes menores e interessantes especulações sobre a sua mentalidade, desenvoltura musical e sensibilidade magnética para reconhecer a propriedade dos metais. O jovem era capaz de diferenciar os pólos negativos e positivos apenas com o toque das mãos. Há várias teorias e verdades que conspiram sobre o enigma de Kaspar Hauser. Uma delas é a sua ligação com a nobreza, sendo neto de Napoleão Bonaparte. Diante desses fatos surge a intrigante pergunta: Por qual razão Kaspar Hauser viveu recluso socialmente por 16 anos?  Diante desta indagação convido vocês a ouvirem a fascinante história narrada por Christian Gurtner antes de verem o filme de Werner Herzog. Pois o filme trata de fatores mais psicológicos e sociais que explicarei mais adiante.  Já as narrações Gurtner são baseadas nos fatos históricos da vida de Hauser.


Kaspar Hauser seria neto de Napoleão Bonaparte?


Christian Gurtner é autor do podcast mais interessante que já ouvi: O Escriba Café. Por que interessante? Por que ao contrário da maioria dos podcast’s, não são discussões sobre um tema, mas sim, narrativas (estilo áudio-book) com base em roteiro e pesquisa sobre o assunto em questão. Gurtner faz perfeitamente as narrativas, somando a uma edição de primeiríssima qualidade e uma sonoplastia que compõem o conteúdo e o desenrolar da história narrada, compondo clima. Por isso convido vocês a ouvirem aqui no player ou diretamente no site Escriba Café  a fantástica narrativa sobre “O Mistério de Kaspar Hauser”.


www.escribacafe.com


Ouça direto no site Escriba Café [Aqui]





O FILME
A visão do diretor Werner Herzog

Werner Herzog é nome artístico do cineasta alemão Werner H. Stipetic, diretor do filme “O Enigma de Kaspar Hauser” (título em português) que originalmente se chama “Jeder für sich und Gott gegen alle” que significa algo similar a "cada um por si e Deus contra todos".


Werner Herzog

Ao contrário do que se possa imaginar, o filme não se trata propriamente da vida de Kaspar Hauser, mas sim, sobre o processo de adaptação social que é imposto a todo indivíduo para ser inserido em um grupo. Hauser e sua curiosa história são apenas alicerces para suscitar diversas indagações sobre a simples questão: “O que forma o Homem animal um individuo social?”. Homem, como nós, com pernas, nariz, olhos, que depende da respiração para viver, que precisa se alimentar regularmente – mas ainda assim, que homem é esse? E se a aparência é idêntica, mas todo o resto nega a proximidade, será que ainda é homem? Kaspar Hauser cumprirá um duplo trajeto dentro do filme, seqüência natural de entronização dos valores que, acredita a sociedade que o acolhe, fazem do bicho humano um homem. Passará pela religião, mas desafia os clérigos quando resiste à aceitação do mistério da fé: diz que precisa primeiro aprender a ler e a escrever para depois entender o resto. Kaspar desconhece a idéia de um Deus como força superior, e ao pedir primeiro o conhecimento terreno, enquadra essa elevação divina como apenas mais um desdobramento da inteligência humana. Chega à lógica, e não entende como ela pode ser uma só, quando o mundo novo do qual começa a tomar parte mostra-se tão múltiplo.


Werner Herzog explora todas as incógnitas sobre o processo de aculturação do ser humano, sem deixar de narrar às características e percepções de Kaspar Hauser diante do mundo que lhe é exposto e imposto. Hauser não tem expressões à sensibilidade de certos sentimentos, tudo é surpresa, desconhece a alegria e a tristeza, mas tem uma imensa sede de conhecer a vida e descobrir a si próprio. É através das artes que ele encontra um correspondente fiel às suas próprias perguntas diante do enigma da vida humana.


CURIOSIDADES
Somente um “louco” para interpretar um “louco”


Os filmes dirigidos por Werner Herzog são conhecidos por sempre conter heróis com sonhos impossíveis ou pessoas com talentos únicos em áreas obscuras. “O Enigma de Kaspar Hauser” além de ser um dos primeiros trabalhos de Herzog, seria um grande feito filmá-lo, pois o que lhe preocupava era justamente encontrar um ator que fosse capaz de representar Hauser. Este era o único papel que ainda não tinha dono, dada a dificuldade imaginada pelo diretor que um ator "normal" teria para dar alguma veracidade ao personagem. 


Bruno Schleinstein (1974)


Foi então que conheceu a figura incomum do artista de rua Bruno Schleinstein. Nascido em 1932 em Berlim, Bruno é filho não desejado de uma prostituta, sofreu freqüentes abusos de sua mãe durante a infância. Bruno viveu internado desde os 3 anos de idade em instituição para doentes mentais sem no entanto sê-lo, e que por volta dos trinta anos havia sido diagnosticado como esquizofrênico por conta dos traumas do cárcere de uma vida inteira. Herzog conheceu o artista durante um passeio nas ruas de Berlin, ficou impressionado com seu talento como pintor e músico. 

 Bruno Schleinstein (2008)
O artista de rua prossegue atualmente seu trabalho com a música e as artes visuais

São famosas as anedotas de set dos dois filmes estrelados pelo Bruno Schleinstein. (os únicos de sua efêmera carreira no cinema), em que o não-ator fazia longas palestras caóticas e desconexas para uma equipe que era obrigada pelo diretor a prestar atenção em cada palavra, ou mesmo quando simplesmente precisava gritar por vários minutos antes de iniciar uma cena. Herzog conta que a postura de Bruno Schleinstein nas gravações era sempre a de alguém que desconfia de todo aquele circo, não só o circo do cinema, mas o circo da própria existência humana na coletividade. Daí que a opção de Herzog por Bruno. E talvez tenha se devido muito pouco à seu passado enclausurado e as complicações vindas dele, e muito mais àquilo que se exibia diante do diretor numa rua alemã qualquer (e que se exibe diante dos espectadores nas duas obras-primas que protagoniza), essa sensação incomum de estar frente à algo tão reconhecível quanto tão completamente estranho e misterioso.


MINHA VISÃO PARTICULAR SOBRE O FILME DE HARZOG


Bruno Schleinstein  e Kaspar Hauser, ambos são símbolos máximos da explosão de uma faceta do mundo que nos é familiar, visível, e mesmo tangível, mas cujos sentidos íntimos nos escapam completamente. E apesar de alguns simbolismos e concepções expostas no filme no campo da sociologia (os quais me esforcei muito para explicá-los, pois sou leigo no assunto) o que ficou evidente para mim, talvez devido as minhas experiências de vida e desafios incomuns que já tive para compor o que sou enquanto individuo único; é que o mundo está perdendo a sua “insanidade construtiva” e as pessoas já não reconhecem a si mesmas. Há muitas idéias para vestir, conceitos para se consumir e desejos para se inspirar. Há muitos arquétipos pré-definido de perfeição moral, estética e intelectual. Entristeço-me ao saber que tudo isso é uma faceta de uma hipocrisia velada que ruge sem ser clamada e afugenta todos que desejam viver além desses estereótipos. Que a verdade é uma mentira e que ainda devemos lutar pela liberdade de pensamento, sentimentos e credos. Vivemos em um teatro de cadáveres risonhos que é para mim muito estranho e brutalmente voraz, toda essa insensatez, que faz com que as relações humanas sejam cultuadas como objetos de consumo. As pessoas se consomem e são consumidas como acessórios, produtos com qualidades especificas expostas em uma gôndola. Não posso dizer que no passado as coisas eram melhores, pois ele eu não vivi. Mas o aroma que tenho de tempos transcorridos é bem mais suave do que as visões do agora. Essa é a minha concepção, sem análise crítica da obra em si. Talvez não seja a sua. Mas aí está. Esta é a beleza da coisa.

FICHA TÉCNICA

O Enigma de Kaspar Hauser (Werner Herzog, 1974)
Dados do Arquivo:
Tamanho: 654 MB
Qualidade: DVDRip
Legenda: Pt-Br
Servido: 4shared
Torrent + Legenda em Português (TEOKH.rar)


LEIA MAIS

Para quem deseja se aprofundar nas análises psicológicas sobre Kasper Hauser, há um artigo de autoria do professora Maria Clara Lopes Saboya (Fundação Instituto Tecnológico de Osasco) - O Enigma de Kasper Hauser: Uma abordagem psicossocial [Leia]

4 comentários:

Rafaela . disse...

Uau! Que história...só vc para descobrir esses achados e nos apresentar de modo tão interessante =]

Jeffao Monteiro disse...

PINGA , EXCELENTE SEU BLOG MEU CARO AMIGO , VEJO QUE ESTA PONDO EM PRATICA AS ARTES QUE TE ENSINEI NA ACADEMIA JEDI , ABRAÇO AND THE FORCE BE WITH YOU...

Daiane Raimann disse...

Estava eu lendo "As Paixões Ordinárias" de David Le Breton, que fala da forma como culturalmente/socialmente moldamos nossa emoções e as formas de expressá-las. Eis que surge o nome Kaspar Hauser no livro. Minha fraca memória tentando vasculhar alguns arquivos mentais...que nada, o Google é bem melhor! hehe Foi então que lembrei da sua indicação do filme. Não sei se teve acesso ao livro mas sua discussão (dentro do âmbito de intereção social do sujeito) é bem próxima de Breton (importante antropólogo, diga-se de passagem). Logo verei o filme e muito provavelmente poderei fundamentar ainda mais meu ódio pela hipocresia da humanidade...rsrs

WV disse...

Esta é, sem dúvida, a *melhor* postagem sobre o assunto que eu já vi até hoje... P-A-R-A-B-É-N-S ao autor do título, Domenium ou Domenes... O texto está "Domeníaco", no boooom sentido, claro... Internet também é cultura, e teu blog prova isso, sim. Se eu, um dia puder escrever o roteiro para algum filme, rapaz, ah... com certeza serei um Herzog brasileiro... Como pessoa -- e professor -- já sou estigmatizado por tantos como um "louco". Louco porque não vejo motivos para ser normal... Isso sim... Abraços... (sou "louco" porque sou mal compreendido pelos "normais"... Assim como um monte de outros "loucos" -- Frank Zappa, Einstein, Jesus Cristo, Dr. Akron e mais um monte de gente boa -- também foram tratados... Teu blog é de utilidade pública -- pelo menos é a impressão que tenho por meio deste post sobre Herzog, Bruno S. e Hauser... Os três comentários antes do meu parecem bombar mais ainda a postagem... Show!!!!